quarta-feira, setembro 23, 2009

TESTEMUNHANDO O SÚRYA NAMASKÁR


Coloco-me na frente do tapete. Em pé sinto a mente serena e o corpo quente após ter feito o aquietamento inicial, a vocalização do shanti pathah e de umas séries de nauli. Construo o samasthiti, activando o múla e uddiyana bandhas e mantendo o suave sussurro da respiração ujjayí. Alinho todo o corpo, desde as plantas dos pés até ao alto da cabeça, como se algo me estivesse puxando para cima, traccionando e proporcionando-me uma sensação de leveza.

Preparo-me para fazer súrya namáskar, a saudação ao sol. O ego recebe com agrado esta decisão pois é das técnicas que mais aprecia mas, ao mesmo tempo, porque me proporciona momentos de concentração, fluidez e não-identificação com os pensamentos e acções.

Escuto o som do ujjayí preenchendo os pensamentos, o corpo e todo o espaço envolvente. A atenção volta-se para dentro, é como se existisse apenas esse som, que me lembra o ir e vir das ondas do mar, e uma força que me mantém alinhado.

Expiro todo o ar, observando como o vazio respiratório me influencia e depois inspiro erguendo os braços pelos lados até juntar as palmas das mãos acima da cabeça em añjali mudrá. O rosto está elevado e foco o olhar nesse gesto. Nessa fracção de segundo que antecede a expiração, enquanto mantenho o urdhva hastásana, humildemente saúdo e entrego a prática a Íshvara (arquétipo do yogi), a inteligência por detrás da minha existência.

Expiro e curvo-me em uttanásana aproximando o tronco das pernas, aproximando-me de mim mesmo. Inspiro e afasto o tronco das pernas, crescendo e esticando-me na segunda variação de uttanásana. Os bandhas mantêm o corpo quente, alinhado e leve.

Expiro e monto o ashva shañchalanásana levando um pé para trás, as pontas dos dedos das mãos tocam o chão, mas tão levemente que não há peso nelas. O corpo cresce desde o calcanhar do pé detrás até ao topo da cabeça numa linha diagonal ascendente.

Inspirando desloco o outro pé para trás ficando com o corpo em prancha (chatuspadásana), estabilizado e congelado na posição como se de uma estátua se tratasse. Com essa firmeza expiro em chaturanga dandásana, suspendendo-me a uns centímetros do solo, paralelo a este. Este ásana desperta em mim uma dupla sensação: por um lado um crescer da força de vontade (devido ao esforço muscular) e por outro o de prostração em relação a íshvara (por me aproximar do chão, da terra).

Inspiro e empurro o chão com os braços, esticando-os, abrindo o peito e crescendo para o céu em úrdhva mukha shvanásana. Só existe movimento, movimento que não controlo, apenas acontece e eu testemunho.

Expirando formo uma montanha com o corpo, onde a partes inferior e superior do corpo crescem encontrando-se num vértice que aponta para cima. Ajusto o adho mukha shvanásana, preparando-me para fazer cinco respirações lentas e profundas. Um… o som da respiração traz a atenção para o momento. Dois… uma sensação de levitação ou suspensão surge, é como se algo me puxasse. Não sinto o corpo, como se este não existisse ou como se tudo à volta fosse esse corpo. Três… a identificação com o corpo-mente vai-se dissipando, dissolvendo-se no calor dos bandhas e do som do ujjayí. Quatro… perco a noção do tempo e do espaço, os sentidos voltam-se para dentro, portas se fecham levando-me a um espaço não definido, ilimitado. Cinco… há uma moldagem espontânea e sem esforço ao tapete, sentindo a sua textura nos pés e mãos.

Inspiro e trago um dos pés para a frente pousando-o entre as mãos. A sensação continua, a fluidez e o silêncio corporal transportam-me para uma nova posição. Expiro afirmando-me e aterrando no chão para depois inspirar e juntar os pés novamente em uttanásana. Nesta altura estou completamente presente em cada movimento, cada músculo, cada acção. Expiro e inclino-me para trás sentindo a abertura da parte posterior das pernas e coxas.

Inspirando cresço e levo os braços ao alto, tocando a ponta da língua no palato mole (jíhva bandha) e relembro o sentimento de saudação. Expiro e volto ao samasthiti, o ponto onde tudo começou, onde tudo retorna e onde me preparo para continuar a fluir no súrya namáskar… tudo pára, o corpo expande-se e contrai-se, pulsando, vibrando…

Nos ciclos seguintes a saudação ao sol torna-se numa roda, girando ritmadamente, onde me consigo destacar do movimento, observando-o acontecer desde o centro dessa roda…

3 comentários:

admin disse...

excelente texto!

Hugo Osório disse...

A verbalização do yoga é um risco e um desafio constante, pois desvirtua muitas vezes o significado das técnicas e o valor que a prática individual naturalmente traduz. Mas este testemunho do súrya namaskár é sublime! O poder de resolução dos pormenores na expressão das técnicas e impressões sensoriais faz-nos entrar automaticamente num ciclo de saudação ao sol, capacitando-nos, enquanto leitores, de nos observarmos no centro desse ciclo. Que bela descrição! Namasté!

Anónimo disse...

Brilhante!

Namastê!

Ana Filipa