domingo, agosto 09, 2009

MENTE, EGO E INTELIGÊNCIA


Este é um excerto do livro de B.K.S. Iyengar "Luz na vida" onde nos é apresentado um simples e belo exemplo de como a mente, o ego e a inteligência actuam perante uma situação do quotidiano.


Você chega a casa tarde e cansado do trabalho. No caminho parou para comer uma pizza e, portanto, não está exactamente com fome. Na cozinha, como por magia, vê-se abrindo a porta do congelador. Lá dentro, um pote de gelado de chocolate.

Tem início a seguinte sequência de eventos:

1. Seus olhos (órgãos de percepção) deparam-se com o gelado, lêem o rótulo (chocolate) e mandam a informação para a mente, para que esta a descodifique e identifique. Uma conexão estabelece-se: a) objecto externo; b) órgão do sentido; c) mente.

2. A mente (como sempre faz) retransmite essa informação ao eu egóico. Os elos da corrente são agora a) + b) + c) + ego.

3. Rápidos como um raio, ego e mente consultam-se, e a memória, que está contida na mente, entra em cena. Automaticamente uma pergunta apresenta-se à memória: "Comer gelado de chocolate resulta em prazer ou dor?"

4. Sem hesitação, a memória responde: "Prazer".

5. O ego diz: "Ok, dê-me". Então a mente coordena a mão (órgão de acção) nos movimentos necessários para retirar o pote de gelado do congelador, abri-lo e pegar numa colher. O resto você já sabe.

Voltemos agora ao estágio 4 para ver se outro resultado seria possível e, nesse caso, como.

5a. Mente e ego percebem vagamente uma espécie de zumbido estático no fundo da consciência, como se alguém estivesse a tentar chamar a sua atenção. Ficam inquietos com isso, então afastam-se (para longe do congelador aberto) e vêem a inteligência agitar-se: "Posso fazer uma pergunta à memória?", ela indaga.

6a. A mente e o ego hesitam, antevendo o problema, mas finalmente respondem: "Seria melhor que não mas, se insistes, não podemos negar-te essa oportunidade".

7a. "Obrigada", diz a inteligência. "Memória, por favor, diz-me o que acontece quando comes gelado todas as noites? Quais são as consequências?"

8a A memória tem uma natureza sincera, embora às vezes erre. Ela responde: "Engordas muito, não consegues entrar nas calças novas, tens sinusite e a tua artrite piora". Se deixar por conta dela, a memória do sabor adquirido no passado cometerá o erro de dizer: "Vá em frente; coma e desfrute". É a intervenção da inteligência que propõe a pergunta mais complexa: "Vivo para comer ou como para viver?"

9a. A inteligência continua a argumentar: "Deixem-me resumir esse impasse", diz ela. "Todos gostamos de comer gelado, mesmo em excesso. Todos odiamos os efeitos colaterais disso, especialmente tu, ego, que és tão vaidoso com a tua aparência. Parece que temos uma escolha: tomá-lo ou não. Todos devemos ter clareza disso" (cognição + escolha).

10a. A pobre mente fica totalmente confusa, já que, a despeito do seu nome, não tem de facto uma mente própria. Ela tomará qualquer direcção, como um cão atrás de uma bola. Geralmente, ela deixa que o ego dê as ordens e o ego está agora muito contrariado. "Eu sempre como gelado quando estou cansado, depois de um dia longo e difícil. É um grande conforto para mim. Devo isso a mim mesmo. É assim que eu sou."

11a. A inteligência (que também está aborrecida por perder as calças, embora principalmente por causa do desperdício de dinheiro) ergue a voz pela última vez: "Desta vez, vou bater o pé (vontade). Estou farta da rotina em que vocês vivem, sempre a mesma coisa, entra dia, sai dia, queixando-se depois das consequências, ou suspirando pelos bons tempos, ou pelo dia em que voltarão a ser bons. Nada vai mudar a menos que mudemos (desafio). Mente, por favor, diz à mão para se afastar do gelado e fechar a porta do congelador". A mente obdece.

12a. No dia seguinte todos sentem-se melhor pelo rumo que as coisas tomaram. Na verdade, o ego é muito presunçoso e convence-se de que foi sua a ideia de desistir do gelado.


Excerto extraído do livro "Luz na vida" de B.K.S. Iyengar, summus editorial

Nota: substitui o termo sorvete de creme por gelado de chocolate por achas mais apelativo, eheheh. Também fiz alguns ajustes na tradução original, do português do Brasil para o português de Portugal.